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“Não morre aquele que deixou na terra a melodia de seu cântico na música de seus versos”. Os versos da poetisa goiana Cora Coralina acaba servindo de conforto para aqueles que conheceram e conviveram com o compositor e cantor Afonso Toscano e que tiveram que amargar sua partida nessa quarta-feira, 29 de maio, um dia que apesar do sol ganhou um tom cinza, ao menos na alma.

Toscano sempre trilhava os caminhos que levavam à noite e aos amigos. Quase sempre levado pelo braço de um violão. Ouvia mais do que falava. E quando falava, com a voz grave de trovão, tinha uma palavra de conforto. No bom e velho Bar do Armando – onde convivemos por mais de 30 anos –, gostava de ficar em pé, com o braço esquerdo escorado no balcão. Enquanto o outro empunhava o copo da cerveja mais solidário que servíamos quase sempre às sextas-feiras.

Conheci Tosca – como gostávamos de chamá-lo –, em 1977, quando cursava jornalismo na Universidade do Amazonas (UA), hoje UFAM. Embora ele cursasse educação física, também na UA, parecia pertencer a nossa turma, porque a gente sempre tinha uma “manifestaçãozinha” de combate à ditadura e festas homéricas para ir. Afinal, a “esquerda festiva” era bem mais agradável do que o discurso raivoso. Ninguém é de ferro!

Naquela época, feito caminhantes noturnos, Margareth Pereira, Carlos Dias, Torrinho, Mônica Maia, Luiza Elaine, Leoneire, Eliana Miranda leão (que saia mais cedo porque era casada),Cleide, Leopoldina Folhadella (a careta que não bebia), Inácio Oliveira e Renato Pinheiro e eu sentávamos em volta do Toscano, no chão, para ouvir canções de uma época de ouro da MPB que nunca mais esqueceremos. Quando ouvia o Toscano e pentelhava para ouvir a minha preferida:

— Porra, Toscano, toca aí o “Ronco da Cuíca”, do João Bosco!
Ele dava uma golada generosa na cerveja. Suspirava pacientemente e dizia:
— De novo?… e tocava – Roncou, roncou/ Roncou de raiva a cuíca/Roncou de fome/ Alguém mandou/ Mandou parar a cuíca, é coisa dos home…”.

Meg, com voz de gatinha manhosa, insistia por ”Miss Sueter”, também do Bosco – “Fascínio tenho eu por falsas louras
(aí, a negra lingerie)/ Com sardas
Sobrancelha feita a lápis/ E perfume da Coty…” Eram longas jornadas noite adentro, que embalaram nossos sonhos de garotos tinham com fome de democracia.

Foi do talento de Afonso Toscano e Celito Chaves o “parceirinho 100%” do Tosca (que também já partiu), que surgiu em 1978 a primeira marchinha da Bica: “A Banda Independente e Confraria do Armando/ tá todo mundo dando/ tá todo mundo dando/ Dando alegria para esse pessoal/ que quer fazer o verdadeiro carnaval/ não tem baile de gala/ não baile da Chica/ vem entrar na Bica!/Vem entrar na Bica…” Foi uma festa.

Naquele ano de estreia da banda, saímos todos de cueca samba-canção para fazer jus à marchinha de Celito e Toscano –“Nosso estandarte é uma cueca/ com cebola e mortadela/ será que é do Armando? / Será que é do Cacela?…”.

Em outro momento, quando saíram distribuindo alvará de soltura para traficantes – fato que virou manchete nos principais jornais de Manaus –, Toscano e eu fixamos a marchinha “Alvará/ alvará/ a minha Bica dessa vez vai levantar…”, enredo que deu muita confusão e até embargo da banda, por mandado judicial. Diante do “esporro” de um desembargador que disse que na Bica só tinha viciado, a marchinha respondia: “Na banda não tem vicio, capisci / aqui na bica todo mundo cheira vick!…”.

Em 1989, numa sexta-feira, no Bar Casarão, de nossa amiga Maysa – fica na Sete de Setembro e tombou sob as garras da especulação imobiliária virando mais um “moderno espigão”–, contei para o Afonso Toscano que lá no quintal da minha casa, no bairro de Cachoerinha, tinha um pé de maracujá.

— Você já prestou a atenção na flor do maracujá? É incrível. Minhas irmãs ficavam de olho nos frutos e eu só queria olhar a flor – contei. E o Afonso:
— Escreve isso aí, bicho! – E eu peguei um guardanapo, escrevi um poeminha, ele dedilhou o violão e depois colocou o papelzinho no bolso. Uma semana depois trouxe a canção Flor de Maracujá que, infelizmente, nunca foi gravada. “No quintal da minha casa/ tinha um pé de maracujá/ todos querem seu fruto/ eu quero só a flor…”.

Torrinho, que fez alguns shows com o Toscano, fechou a música com refrão “a arma do rei aponta onde o povo está…”
Como todo cara sincero até demais, Toscano dizia na lata tudo o que pensava. E nunca levava desaforo para casa. Certa noite, pasmem, entra no Bar do Armando nada menos que João Nogueira, com olhos de peixe morto de quem já tinha amassado uma no caminho. Ficamos maravilhados, o João era um dos nossos preferidos. Pela boa música e pela cachaça, também. Afonso amava seu trabalho. Rapidamente, se formou uma roda para ouvir o poeta de “Espelho”.

Mais tarde, saído não se sabe onde, já que ele não frequentava o boteco do Armando, apareceu Chicão Ameida – cônsul das Filipinas –,que corajosamente, convidou aquele bando de malucos para um jantar em homenagem ao João na sua casa. Lá, Afonso Toscano começou a mostrar algumas de suas músicas e João fez uma crítica deselegante que Toscano não gostou e deu o troco:

— João, você é muito bom, mas também já fez muita merda!
E o tempo fechou, com violão, cigarros e pratos voando no sururu! E então, por motivos de força maior, não jantamos e nem esperamos a sobremesa.
— Quando chegar em casa, vou quebrar todos os discos desse puto! – resmungou Toscano.

Perdemos o Toscano, sim, mas não a sua luz, talento e generosidade. Escrevi essas mal traçadas linhas, ouvindo “Enredo”, o único disco gravado do Tosca. E lá, reencontrei velhos amigos que nunca mais tinha “visto”, que também assinaram parceria com o Afonso: Carlinhos Carneiro, Antônio Paulo Graça, Inácio Oliveira…

Texto: Mário Adolfo

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