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Era o final do mês de junho de 1984. 25 de junho, para ser mais exato.

Eu vinha saindo da redação quando o jornalista Flávio Assen perguntou à queima-roupa:

— Topa ir a Parintins?

— Quando?

— Agora!

— De avião?

— Não, de barco.

Quando se tem 20 anos, ninguém tem medo de nada. Só pedi um tempo para arrumar a minha Samsonite (bolsa da época). Às 18h30, lá estávamos nós, descendo o rio Negro em busca do Amazonas, no navio “Onze de Maio”. O sol se desmanchava na água, toldando-a de alaranjado e o toca-discos saudava o prenúncio da noite com um chorinho do Waldir Azevedo.

O barco era de luxo. Tinha bar, cadeirinha para pegar sol, chuveiro e até um telão.

A partida era só emoção:

— Que barco, hein Flávio?

— Pois é, bicho, nem parece que ele naufragou em 1978 e que, aqui mesmo, morreram 23 pessoas.

Fiquei arrepiado e pedi outra cerveja.

À noite, quando um manto de estrelas compensou a escuridão das águas, o capitão do barco iluminou o telão com a fita  de Independência ou Morte, aquele filme que já havia passado nos cinemas há pelo menos uns três anos.

Mas, na solidão do mundo, qualquer paixão nos  diverte. Assen e eu abatíamos a nossa oitava cerveja sem ligar muito para o olhar do peixe-morto que Tarcísio Meira (D. Pedro) jogava sobre Glória Menezes ( Marquesa de Santos). Quando escrevo esta primeira coluna, parece que um videoteipe passa por minha cabeça. Foi exatamente nesta cena que ouvimos a batida um ataque solitário e uma voz marota cortando a escuridão:

— Na Ilha Tupinambarana/ nasceu Parintins que eu vou decantar/ Parintins dos parintinenses/ o nome da tribo desse lugar...

Aos poucos, sob a tênue iluminação da lâmpada do barco, coberta de insetos, surge a figura sem camisa, descalça, apenas de calção, que batia o tambor insistentemente. Meio querubim, duende, curupira, matintaperera ou sei lá o quê, a figura entrou no convés do barco, dançando dois-pra-lá-dois-pra-cá que até então era um bailado desconhecido para nós, marinheiros de primeira viagem.

Chico com a camisa do Boi Caprichoso

— Flávio, ou eu muito me engano, mas esse cara é o Chico da Silva!

— É ele mesmo – confirmou Assen. Naquela época, Chico da Silva já havia estourado com Pandeiro é Meu Nome, Sufoco, O Surdo, Seleção do Samba e até tinha convidado Roberto Carlos para subir o morro, na abertura do Fantástico.

Em pouco tempo, os casos de cervejas vazias já somavam mais de 20. Para desespero dos que tentavam dormir, invadimos a madrugada, escutando as primeiras explicações de boi, o mistério das toadas e as recordações de infância de Chico que, depois do sucesso no Sul Maravilha, retornava para casa com a sensação de garoto vitorioso.

Em 1984, Chico já era nome nacional. Nada mais justo que a prefeitura de Gláucio Gonçalves mandasse buscar o filho da terra para fazer o espetáculo de encerramento do festival folclórico. Naquela época, tinha disso: o festival encerrava com um grande show, onde todos brincavam. Só que houve um racha e, na última hora, o boi-bumbá Caprichoso resolveu se retirar do festival e se apresentar no seu curral. Logo, Garantido e um boi chamado de Campineiro eram os únicos no tablado oficial, de madeira, armado no meio da praça.

Pago pela prefeitura, Chico da Silva tinha de ficar, lógico, na festa da prefeitura. Para minha surpresa e de Flávio, numa visita ao curral do Caprichoso, lá estava Chico, de tanga e cocar, desfilando numa das tribos do contrário. E o que é pior, no maior “pifão”, mais rouco do que ganso gripado.

— Rapaz, como é que esse cara vai cantar? – preocupava-se Flávio Assen.

— Com limão, andiroba e mel de abelha! Tu vais ver só! – explicou-se Chico, com a voz esganiçada, garantindo que aquilo era “rouquidão emocional”, provocada pelo retorno à casa paterna.

Um assessor de Gláucio, que nos acompanhava como guia, indignou-se.

— Traidor, vou mandar suspender o cachê dele! – ameaçou.

Mas não conseguiu cumprir a vingança. Na terceira noite do festival, Chico foi lá e arrebentou. Cantou por mais de três horas e seu povo nunca tinha sido tão feliz.

De manhã., viajou sem se despedir.

Levou meus óculos Ray-Ban e eu peguei, de refém, seu sapato Samello branco. Que até hoje está lá em casa.

Chico é ícone vivo do Festival de Parintins
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