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Altair Rodrigues era um astuto repórter de polícia na época em que A Crítica resolveu investir pesado na editoria, chegando inclusive a trazer do Rio de Janeiro o grande Octávio Ribeiro. Para as gerações que não conheceram o lendário repórter. Octávio, que ganhou o apelido nas redações de Pena Branca por causa de uma mexa branca que tinha no cabelo –,  era tão bom no que fazia que inspirou o seriado Plantão de Polícia, da Rede Globo, onde o jornalista Waldomiro Pena, vivido por Hugo Carvana, desvendava os mais incríveis casos que entraram para a história da crônica policial do Rio de Janeiro.

O dono de A Crítica, Umberto Calderaro, conhecia  Otávio Ribeiro de longas datas e, quando o repórter já estava quase aposentado, fazendo apenas free-lancer, o velho homem de imprensa o encontrou em um restaurante de Ipanema e fez o convite para o repórter dar uma assessoria ao seu jornal, em Manaus.

—  Pena, quero que você vá para Manaus e ensine aqueles moleques a fazer polícia. O que vende jornal é Polícia e Esporte, e a meninada lá anda fazendo ”relatório”.

Octávio Ribeiro, que nuca corria do pau, topou a parada e se mudou de malas e cuias para Manaus. No mesmo dia em que chegou, deixou as malas no hotel e foi direto para a redação do jornal que, à época, ficava na rua Lobo D’Almada, Centro. Naquele mesmo dia reuniu a galera de  Polícia, formada pelos jornalistas Altair Rodrigues, Francisco Pacífico e Fernando Ruiz  – por coincidência do destino, os três já partiram ainda jovens. O Octávio também.

—  Olha aí, ô piroca (era assim que ele chamava repórter iniciante, fosse mulher ou homem), bora colocar mais tempero  na coisa. Tem que romancear o fato, tornar atrativo, aguçar a curiosidade e a imaginação dos leitores. Entendeu piroca? Tirar leite da pedra…  dar um  toque de mistério, de investigação, levantar suspeitas, tipo da Agatha Christie. Vocês conhecem Agatha Christie, piroca?

Silêncio total. Octávio continuou:

— Eu fiz isso a vida inteira e me dei bem. Tem que dar  nome para o crime e romancear. Vocês lembram como eu vendi  várias manchetes sobre o assassinato da Dana de Teffé? E do bandido Mineirinho vivo ou morto. E do Lúcio Flávio e do Cara de Cavalo? Vocês acompanharam algum desses casos, ô piroca?

Silêncio total. Nosso time de repórteres de Polícia parecia a piada da coruja que foi vendida como papagaio ao português. “Fala não fala, mas presta uma atenção”, deduzia dias depois o portuga. Altair, Ruiz e Pacífico prestaram a maior atenção nas dicas do pena Branca e a coisa começou a funcionar. De repente A Crítica disparou nas vendas com manchetes do tipo “O Crime do Biquini Verde”, porque a mulher fora  encontrada morta na Ponta Negra vestindo somente um biquíni. O estuprador do bairro do São Raimundo esteve por quase 10 dias nas manchetes  como “O Monstro da Colina”. Agora a  coisa  realmente estava  com o tempero que o Calderaro queria. E o Otávio Ribeiro estava orgulhoso da cria.

— Tô gostando de ver, hein Piroca! Tão botando fodendo. Calderaro me disse que vai rolar um cala boca (dinheiro por fora). Então, não deixa a peteca cair, piroca!

Altair era o mais novo e o menor dos três mosqueteiros da editoria de Polícia Tão entroncadinho que, ao olhar pela primeira vez para a sua figura, o diretor de Redação, Peri Augusto, fez um comentário que pegou para sempre na vida do jornalista.

— Parece um capitarí!

Pronto. Altair estava batizado para sempre com o nome do quelônio que habita as águas da Amazônia. Como era atrevido e ousado, Capitarí aprendeu rapidamente todas as manhas do Pena Branca. Ainda não era época do politicamente correto, então, valia tudo para  “romancear o caso”, como Otávio queria. Na época eu ainda estava na faculdade e era editor de Internacional.  E lá da minha mesa eu observava tudo. E como andava descobrindo nos bancos do curso de Comunicação Social que jornalismo também devia ser pautado por uma coisa chamada ética, comecei a observar a repetição de algumas legendas nas matérias do repórter. “Morreu olhando para a morte”,  no rodapé da foto do “presunto” – como chamam cadáveres nas redações –,de olhos abertos. Essa saia quase  toda semana.  Ou então “antes de morrer ele deve ter olhado a face de seu assassino”. E lá estava a pobre vítima de olhos abertos.

Comecei, por conta própria a questionar isso nas rodas do cafezinho na redação. Numa delas,  o fotógrafo Isaac Amorim fez a revelação que me deixou indignado.

— Bicho, toda matéria do Capitarí o defunto está de olhos abertos. Vocês não acham isso esquisito? –, cutuquei.

— Porra, Mário Adolfo, o sacana anda com um cabo de vassoura na mala do  carro do jornal, e tu sabes pra quê? Para levantar as pálpebras do morto e deixar o coitado de olhos abertos, toda vez que ele vai no IML.

— Filho da mãe!

Na primeira oportunidade de falar com o seo Calderaro, abocanhando um sanduba de pernil no “Jangadeiro”, eu me queixei, quando o velho homem de imprensa perguntou:

— O que tua achas do Capitarí, Mário? –, perguntou o velho homem de imprensa.

— Olha, seo Calderaro, eu acho bom. Mas só que, às vezes, na ânsia de dar a manchete ele exagera um pouco e acaba atropelando a ética que tem que haver no jornalismo.

— Como assim?

— O senhor sabia, seu Umberto, que o maluco abre  a pálpebra dos “presunto” com cabo de vassoura só pra fazer a legenda “morreu olhando para a morte”?

A reação do Calderaro foi de espanto.

— Rapaz, é mesmo? Esse é bom! – festejou o velho homem de imprensa.

Com o  respaldo do chefe e as bençãos de Otávio Pena Branca, Altair seguiu em frente, mais serelepe do que nunca. Até que um dia ele passou, definitivamente, dos limites. Publicou uma matéria que contava uma história pra lá de absurda.

Segundo Capitarí, Ronilsson e Romilson, dois irmão do interior do Amazonas, um lugar abandonado onde sequer havia carro, ouviram falar do famoso “Assalto ao Trem Pagador”, protagonizado pelo inglês  Ronald Biggs, e colocaram na cabeça que iam ficar ricos depois que assaltassem um carro forte em Manaus. Planejaram tudo direitinho. Venderam o que tinham e rumaram para a Zona Franca de Manaus. Depois de conseguirem hospedagem em um hotel fuleiro da  rua Joaquim Nabuco, caminharam até a avenida Getúlio Vargas para observar a movimentação do trânsito e descobrir o roteiro do carro forte. Depois de assistirem pelo menos 800 carros passarem à sua frente, Romilsom  perguntou pra Ronilson:

— Espia já, mano velho, e  tu já viu esse tar de carro forte?

— Mas home vá a purra! Não sei nem como é. Só sei que ele é um carro parrudo, que tem motorista e um guarda na frente e, atrás, vem atarracado um tanque  abarrotado de dinheiro. Mas é dinheiro, viu seu minino? É dinheiro pra dá cum pau!

E ficaram lá observando. No final da tarde, o sol avermelhado já começara a morrer, tingindo a cidade de laranja, quando eles avistaram um carro grande cuja carroceria era um tanque fechado:

— Espia só,  Ronilson, aquele parrudo que vem lá tem jeitão que é o tar do carro forte!

— E o que tamo esperando? Rende o motorista que eu rendo o guarda!

Quando o carro parou no semáforo eles atacaram. Chegaram na janela e, mostrando o bico do trabuco enferrujado, anunciaram o assalto pausadamente:

— Caboco, encosta o carro forte e sai sem fazer panovoeiro ou eu te encho de chumbo!

O guarda nervoso largou a arma e saiu com as pernas trêmulas. Romilson e Ronilson entraram no carro e ameaçaram o motorista.

—  Agora, cabra safado, Toca cuns caralho pro tal de Ceasa que dizem que é um lugar longe pra purra.

Nervoso, o motorista afundou o pé e conduziu o veículo até o porto do Ceasa, onde a estrada acabava no Encontro das Águas. Na época, a feira ficava distante da pista. Depois de amarrarem e amordaçarem o motorista e jogarem o coitado atrás de uma moita, Romilson disse para Ronilson.

— Agora, mano velho é só arrombar essa purra desse tar de carro forte e tamo rico!

Antes de dar a primeira porrada com a marreta para arrancar a tampa do “carro forte”, Romilson perguntou :

— Tu peidou, foi Ronilson?

— Égua, Romilson, eu mesmo não!…

— Home vá a purra! Tá batendo uma cantiga de lascar!

Quando Romilson desceu a marreta para arrombar a tampa do carro, um jato de merda espirrou pela brecha, banhando os assaltantes da cabeça aos pés.

Lá do meio da moita, o motorista,  que havia conseguido se livrar da mordaça gritou;

— É o carro do limpa-fossa, cambada de jumento!!!

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