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Quem viveu os antigos carnavais sabe que a musa da folia não era somente a morena abençoada por Deus e bonita por natureza, que ostentava o estandarte do bloco ou desfilava como a rainha da bateria. Era também uma argentina que provocava a maior euforia nos foliões quando chegava aos salões dos clubes. Vinha engarrafada em um frasco fino, transparente e que atendia pelo nome de lança-perfume.

A febre pelo frasco era tão grande que, em fevereiro 1961, o jornal carioca  Diário da Noite publicava uma página inteira sobre o Baile dos Artistas no Hotel Glória, e vejam qual foi a manchete: “Cheiro venceu uísque no Glória”. A matéria informava que “apesar do policiamento ostensivo, o lança-perfume animou os foliões a noite inteira”. E registrava que o bar ficou mais vazio que de costume, a dose de uísque custava Cr$ 200, o mesmo preço que uma bisnaga de lança-perfume, mas a bisnaga “durava muito mais e seus efeitos eram fulminantes”.

Uma outra manchete onde se lia “O cheiro é livre”, com uma foto arregaçada em uma página inteira, mostrava o baile no Hotel Quitandinha, em Petrópolis. Uma pequena nota abaixo da manchete resumia “Carnaval houve pouco. Mas o cheiro era livre, o lança-perfume (além de 300 litros de uísque), foi o combustível que lançaram mão os foliões para alegrar a festa.”

Sim, o lança-perfume já foi o queridinho dos carnavais de antigamente. Até ser banida da folia após passar a ser considerado uma droga no Brasil. A ampola que “dava barato” e agitava o carnaval foi expulsa do baile em 1961, proibida pelo então presidente da República, Jânio Quadros (1917-1992), que já tinha proibido até o uso do biquíni e da briga de galo. Aquele lunático mesmo que, alegando a interferência de “forças ocultas” renunciou ao mandato e deu no que deu.

Hoje, o lança – cuja posse é punida com até 15 anos de cadeia – só foi proibido no Brasil na década de 60, quando se espalhou seu uso como entorpecente. Mas antes disso, fazia tanto sucesso que até inspirou música, a  marchinha “Carta da Roça” – que também ficou conhecida por  “Ozébio”, composta por João de Barro, e foi sucesso no carnaval 1961, cantada por Araci Costa. Em um dos trechos, a letra dizia assim: “Ozébio me mande/ um lança-perfume bem grande/ aqui no lugar onde eu moro/ eu quase que choro e quero fugir/ não jogam confete/ Não tem serpentina e toda menina/ quer se divertir”.

Da marchinha ao rock, o lança transitava numa boa, antes da censura. A roqueira Rita Lee e o maridão Roberto de Carvalho, por exemplo, não ficaram imunes ao frasco e cultuaram o cheirinho na balada Lança-Perfume, lançada em 1977, quando o perfume maldito já era clandestino – “Lança menina, lança todo este perfume/ Desbaratina não dá para ficar imune/ Ao teu amor que tem cheiro de coisa maluca…”

O lança-perfume aparece no Carnaval de 1906, no Rio de Janeiro, sendo rapidamente incorporado nas batalhas de confete nos bailes de salões em todo o país

Mas o que tem mesmo o lança-perfume que deixava todo mundo de ponta-cabeça no carnaval? O lança-perfume é um produto desodorizante com aroma aproximado do perfume L’Air Du Temps, de Nina Ricci em forma de um spray. O líquido, que é a base de cloreto de etila (H3C-Cl) e acondicionado sob pressão em ampolas de vidro, devido a combinação do gás e perfume, ao ser liberado, forma um fino jato com efeito congelante. De acordo com a medicina, o princípio ativo do lança, chamado cloreto de etila, dá ao usuário uma sensação imediata de bem-estar, causando excitação, euforia e perturbações auditivas e visuais. Mas depois do pique, o maluco que ensopou o lenço e levou ao nariz começa a sentir uma certa  desorientação, depressão e até alucinações.

Médicos garantem que, em dose maior, o lança-perfume pode provocar desmaios. Se a pessoa não for atendida, pode entrar em coma e morrer por parada respiratória. Lança-perfume acelera a frequência cardíaca, podendo chegar até 180 batimentos por minuto. Aparentemente inofensiva devido ao seu odor, esta droga destrói as células do cérebro e pode levar o usuário a ter desmaios ou em  caso extremos até a morte, através de parada cardíaca.

Os efeitos do lança-perfume podem variar conforme a quantidade inalada pelo usuário. Ele age no sistema nervoso central e causa desde um pequeno zumbido até fortes alucinações. Inicia 5 a 10 segundos após a inalação da droga e dura de 30 segundos a até 10 minutos.

Mas, naquela época, com pouca informação na mídia (necas de internet), ninguém sabia disso e cafungava fundo no lenço durante o reinado de Momo. Certa vez, por volta de 1979, numa segunda-feira de carnaval, vi uma cena que nunca esqueci. Aconteceu numa tarde de um sábado magro de carnaval, no TOP Bar, do seu Aristides, esquina das ruas Borba com a Parintins, bairro de Cachoeirinha. Dois garanhões da   turma, Odivaldo Guerra e Zazá (que nos deixou esse ano), resolveram compartilhar  o lenço. Ensoparam de lança-perfume e imprensaram nariz com nariz, abraçados.  A cafungada foi tão intensa que os dois caíram em cima do tapete verde da mesa de bilhar.

Em Manaus, no final dos anos 1970, com a facilidade da Zona Franca para trazer produtos importados, o lança–perfume chegava com facilidade nos clubes. Até porque, ainda naquela época, o lança-perfume era encarado em Manaus como uma diversão inocente. O lendário Gilberto Barbosa (Gil), o mais festejado colunista social de Manaus, chegava a receber caixa da famosa Estudantina, uma legítima argentina que ele, generoso, dividia na redação do jornal com a “plebe” (nós), que íamos em caravanas aos carnavais do Olímpico Clube, Rio Negro, Cheick Clube e na boate Refúgio, na estrada da  Ponta Negra, onde o próprio Gil organizava um promovia um carnaval do arromba.

Bons tempos, velhos carnavais. E, como diz a canção “Cordão da Saideira”, de Edu Lobo,  “hoje não tem dança/ não tem mais menina de trança/ nem cheiro de lança no ar/ Hoje não tem frevo
Tem gente que passa com medo/ E na praça ninguém pra cantar…”

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