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O estado de  Roraima chamou a atenção do mundo em 1998, quando um incêndio de grandes proporções começou a devorar a floresta numa velocidade espantosa. O  que mais impressionou os cientistas que analisavam as imagens de satélite ou observavam os estragos diretamente foi o avanço do fogo sobre áreas de floresta primária, antes quase imunes às queimadas, que normalmente ocorrem na região, na época da seca.

Em Manaus, atento ao céu coberto por um manto cinza farejei, com faro de repórter, de onde estaria vindo o fumacê. Chamei o fotógrafo Carlos Dias, meu amigo de faculdade e parceiro de grandes reportagens no AMAZONAS EM TEMPO, para sair sem pauta de editor, em busca da grande manchete. 

— Se a gente quiser mesmo achar esses focos de queimadas, temos que investigar primeiro o Puraquequara. É lá que tem um monte de sítio e neguinho adora fazer roça no verão –, sugeriu Carlão, com seu eterno olhar crítico.

— Então, vamos começar por lá -, assenti, pegando a caderneta de anotações, uma caneta, meu óculos Ray-Ban e a inseparável bolsa a tiracolo.

Depois de muito vagar, resolvermos voltar para a redação de mãos abanando. Mas, antes, pedimos ao motorista Arquimedes que avançasse um pouco mais na estrada. E foi aí que começamos a ouvir um barulho de gravetos quebrados, pássaros voando  e árvores desabando. Não deu outra. Eram  línguas de fogo devorando a mata. Não era nenhum inferno na torre, mas o Carlão abriu no zoom na labareda e fez uma foto de capa do New York Times. Votamos para redação e, claro, com a manchete. A capa da edição do dia seguinte era uma foto de meia página com o título “Queimada devora a Floresta”.

No mesmo dia, o Ibama convocou a imprensa para um sobrevoo em Manaus para  fazer um levantamento dos focos de queimadas. Nesse voo, estava um repórter do Estadão que se aproximou de mim e do Carlos Dias e disse:

— Estou aqui por causa dessa matéria de vocês –,  e mostrou a capa do EM TEMPO.

No mesmo dia, soubemos que a coisa estava mesmo feia era lá pras bandas de Roraima. Onde, há uma semana, o fogo avançava sobre a floresta. Quando mostrei a matéria para a diretora Executiva do EM TEMPO,  jornalista Hermengarda Junqueira, ela riu e disse:

— Eu te conheço. Quer ir lá?

— Eu quero! – respondi entusiasmado.

— Liz, liga para os hotéis de Roraima. Reserva apartamento para os meninos e manda buscar as passagens na agência -, disse Menga à secretária da redação, Lizete.

De repente, lá estávamos nós a caminho de Roraima. Ao lado de repórteres da Veja, Isto É, Jornal do Brasil, Estadão, Folha, Correio Braziliense e até da Revista Times. Chegamos no hotel às 18h e constatamos que Liz seguiu à risca as orientações da Menga para cortar despesas, porque o Plano Cruzado estava ferrando o jornal, e nos colocou em um hotel com ventilador, cujo vento era mais morno que o ar que vinha da floresta e tinha apenas um banheiro no corredor para todos os hóspedes.

— Não fico aqui nem fodendo! – reclamei pro Carlão.

Meu amigo fotógrafo cutucou a onça com vara curta. 

— Jornal sério bota seu pessoal lá no Apaina. Tá todo mundo lá.

Carlão se referia ao Aipana Plaza Hotel, o cinco estrela de Boa Vista, que à época pertencia à Varig e tinha uma diária calculada em dólares. Na época, eu tinha um cartão American Express Gold, que cobria até a compra de um carro, se quisesse. Olhei pro Carlão e decidi:

— Vamos pra lá. Depois o jornal reembolsa! – disse, sem muita certeza.

No primeiro dia do hotel deparamos com uma cena, aliás com uma fraude, que nunca vou esquecer. Um conhecido repórter da TV Globo (vou omitir o nome por uma questão ética) tinha que fazer uma passagem para o Jornal Nacional, e como o deadline  já estava estourando, ele pediu para um moleque tacar fogo num folharal atrás do hotel e pediu ao cinegrafista que o enquadrasse diante das chamas. O que foi ao ar à noite, parecia que Roraima inteira estava pegando fogo. Isso bastou para os coleguinhas darem o maior gelo no rapaz, durante toda a cobertura. A mesa que ele sentava ninguém dividia.

No outro dia, durante uma entrevista coletiva do comandante da operação do Exército que trabalhava para debelar o incêndio, descobrimos que aquela cobertura não seria fácil. O coronel simplesmente admitiu que o governo brasileiro não possuía equipamentos para combater as chamas, por isso, era preciso esperar o socorro do Exército argentino.  Descobrimos também que o incêndio na floresta ficava a, pelo menos, duas horas de carro.

— E agora, ninguém tem carro.

Abri a carteira e mais uma vez contemplei o meu Amex Gold.

— Eu resolvo isso. Depois o jornal me reembolsa – disse eu, sem muita certeza.

Alugamos um Pálio e, com o Carlão no volante,  rumamos em direção à floresta.

E lá demos de cara com o “inferno de Dante”. As chamavas avançavam fazendo um barulho ensurdecedor. Bichos fugiam da mata, a gente não conseguia respirar e helicópteros argentinos, com um recipiente chamado de “cadinho”, mergulhava a ferramenta no rio e voavam sobre as chamas, despejando a água, numa espécie de operação conta-gotas. Lembrava aquela fábula do beija-flor que carregava água no bico e atirava algumas gotinhas sobre o fogo – “estou fazendo a minha o parte”.

No primeiro dia mandamos um material riquíssimo, com fotos de fazendas, sítios e chácaras destruídas pelo fogo, carcaças de animais queimados, vaqueiros tangendo o gado para longe do desastre. Cenas de cortar o coração. Passamos a semana inteira colados aos bombeiros e ao pessoal do Exército só paravam por alguns minutos para almoçar, sob barracas de lona. No final da tarde, retornávamos a Boa Vista para enviar o material para o jornal.

Não havia computador. Carlão gerava as fotografias pelo sistema de radiofoto, na redação do jornal Brasil Norte, que tinha como diretor o jornalista Humberto Silva, que já havia passado pelos jornas de Manaus. Minhas matérias – uma média de cinco por dia –, eram transmitidas por telex.

Foi na redação do Brasil Norte que descobrimos que naquela sexta-feira, o ex-candidato a presidente, Luiz Inácio Lula da Silva desembarcaria em Roraima para acompanhar o combate ao incêndio da floresta. Sem mudar a roupa, fizemos um rápido lanche na avenida Ayrton Senna e rumamos para o aeroporto, onde já havia um batalhão de jornalistas. Lula havia acabado de perder a eleição para Fernando Henrique Cardosos, mas parece que continuava em campanha, sabedor que um dia seria presidente. Era uma questão de tempo. Sua chegada estava programada para as 21 h, mas deu 22h e o barbudo não apareceu. Aos poucos, repórteres, fotógrafos e cinegrafistas foram abandonando o  aeroporto.

— E nós? Vamos ficar ou vamos embora. Já são quase 11 horas – cutucou Carlão.

— Vamos ficar. A gente pode até quebrar a cara, mas se o Lula vier a gente fura todo mundo.

Minha intuição estava certa. Lula desembarcou aos 23 minutos da madrugada de sábado, ao lado do então presidente da SBPC, Aziz Ab’Saber. E só nós estávamos no aeroporto.  Fizemos a entrevista e mandamos pro jornal pela manhã cedo. Naquele mesmo dia, ao chegar na área em chamas,  Lula deu provas de que sabia gerar fatos para virar manchete em qualquer lugar do mundo. Ao observar que ali estava o peso pesado da imprensa nacional e internacional, quebrou um galho de um arbustos e começou a bater o fogo:

— Se dez mil homens fizerem isso que estou fazendo, a gente apaga esse fogo! – disse, causando gargalhadas entre os jornalistas. E adivinhem qual foi a foto da capa de todos os jornais, no dia seguinte?

No 15º dia, soubemos por um indigenista do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que dois pajés  Wapichana    chegariam a Boa Vista para fazer uma pajelança e apagar o incêndio.

Eufórico, telefonei para o Kleber Oliveira, que na época fechava a capa do EM TEMPO.

— Bicho, segura a capa que vou mandar um materaço. Dois pajés que estão aqui, garantem que vão apagar o incêndio com reza!

— Andou fumando o quê, cara? – ironizou o editor. Mas ele não perderia por esperar. Por volta das 17 horas, os índios velhinhos, com a pele flácida, surrada de sol, e uma carinha engelhada que nem maracujá de gaveta, rumaram para o rumo do rio, com uma legião de jornalistas atrás.  Lá, eles enrolaram um cigarro esquisito feito com folhas, acenderam, prenderam no beiço e passaram a jogar, com as mãos em forma de concha, a água pra cima. Ao mesmo tempo iam desfiando uma ladainha incompreensível. Tipo assim:

— Waptua karasirobia nhungtuakxeu wokimeuovoesquerdo kuchackuowb…

Ninguém entendia patavina. Mas, dez minutos depois caiu um pau d’água tão forte que fez todo mundo correr pra debaixo de uma árvore. O toró foi tão violento, que apagou não só o cigarro dos pajés, mas também o incêndio da floresta, que ficou coberta por uma cobertura de cinzas fumaçando.

No início da noite, Hermengarda Junqueira ligou:

— Tudo bem por aí?

— Tudo bem…

— Muito bom o material, hein? Excelente.

—Alguma novidade?

— Só alugamos um carro e estamos no hotel cinco estrela Aypana. Vou mandar a nota pelo fax.

— Deus que te livre! –, suspirou Menga, batendo o telefone. 

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